Lançamento do livro que analisa relação imprópria entre procuradores e magistrados acontecerá no dia 15, em Porto Alegre.
No dia 9 de junho de 2019, a página do jornal The Intercept Brasil iniciou uma série de reportagens que trouxe transcrições de mensagens trocadas entre integrantes da força tarefa Lava Jato, entre elas do procurador Deltan Dallagnol com o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, expondo um comportamento antiético. Frente à repercussão e ao escândalo gerado pelas reportagens, o Coletivo LEME idealizou a realização desse registro histórico. A editora Tirant Lo Blanch, com o apoio dos Institutos Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra) e Joaquín Herrera Flores, reuniu em 420 páginas, 60 artigos que analisam os principais pontos revelados. O lançamento em Porto Alegre acontecerá na próxima terça-feira (15), às 19h, no Chalé da Praça XV, no lago Glênio Peres, centro da cidade.
A publicação é organizada por Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Cavalcanti Melo Filho e Mirian Gonçalves, tem ilustrações de Renato Aroeira e prefácio do escritor e jornalista Fernando Morais. Além do lançamento do livro, haverá debate com a participação de Wilson Ramos Filho, Tarso Genro, Valdete Souto Severo, Mauro Menezes e Antônio Castro. Também haverá uma videoconferência do lançamento do site do Instituto Novos Paradigmas (INP).
Para Wilson Ramos Filho, o livro leva o leitor a refletir não apenas sobre as relações que estão sendo expostas, mas também as que não estão reveladas. “São situações do subterrâneo do mundo jurídico e que, de forma alguma, podem ser naturalizadas ou ficarem sem uma resposta da sociedade”, afirma Wilson. “Este é um livro para ser lido e guardado para que nossos netos conheçam, em detalhes, o pesadelo em que o Brasil foi mergulhado pelas elites que há quinhentos anos decidem nosso destino”, explica Fernando Morais.
Publicamos, abaixo, um dos ensaios que compõem o livro, de autoria da jurista Valdete Souto Severo.
O comprometimento da soberania nacional
Valdete Souto Severo
Tudo o que vem sendo relatado pelas reportagens do site The Intercept Brasil e seus parceiros revela um problema profundamente ligado à noção de soberania nacional. Tornou-se finalmente impossível seguir defendendo o argumento de combate à corrupção como autorização para o desrespeito às regras jurídicas. Os atos que levaram à segregação de Lula foram ditados pela parcialidade, pelo conluio entre Ministério Público e Poder Judiciário, pelo vazamento ilegal de informações e pela quebra de princípios constitucionais que balizam o Estado Democrático de Direito, como o de presunção de inocência. Enquanto isso, FHC não foi investigado, Aécio Neves e Temer não estão presos; não houve investigação adequada para os 39kg de cocaína encontrados em avião presidencial, para as armas encontradas na casa de um vizinho do presidente ou para as proximidades evidenciadas entre a família de Bolsonaro e os possíveis mandantes da morte de Marielle Franco.
Na atual quadra da nossa história, o ódio cego contra o PT, minuciosamente construído nos últimos anos, através da retórica de que apenas esse partido pratica corrupção, teve o efeito de obscurecer todo o resto. A prisão de Lula legitimou esse discurso, mas um exame minimamente crítico dos últimos fatos impede que essa ladainha siga sendo repetida como mantra.
É claro que as práticas de corrupção, inclusive dentro do PT, contribuíram fortemente para a construção desse imaginário coletivo. Ainda assim, os fatos já trazidos a conhecimento público demonstram que Sergio Moro obteve inequívoca vantagem com todas as manobras que fez para conduzir a operação lava jato. Desde o início da lava-jato, as regras sobre competência criminal foram ignoradas e Moro chegou até mesmo a desautorizar um desembargador, enquanto estava em férias. A decisão fundamentada proferida pelo desembargador Rogerio Favreto não apenas foi descumprida, como o descumprimento da ordem foi chancelado pelo STJ no dia seguinte e justificado com o argumento de que Moro teria agido “com oportuna precaução” ao consultar o presidente do seu tribunal para saber se deveria ou não cumprir a “anterior ordem de prisão ou se acataria a superveniente decisão teratológica de soltura”.
Enquanto atuava como juiz, Sergio Moro vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e Lula. Mais tarde, durante o processo eleitoral, a seis dias do primeiro turno das eleições, retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci. Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, instruindo sobre as provas a serem produzidas. Moro sentenciou em tempo recorde e após retirar Lula da corrida eleitoral, aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão. E segue cometendo ilegalidades. Recentemente, entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça. Tudo amplamente divulgado.
Há muitas provas, portanto, de que Moro, assim como os procuradores que atuaram na operação lava jato, reiteradamente corromperam as regras jurídicas. O interesse pessoal ou a imoralidade desses agentes públicos não explica suficientemente, porém, o fato de que as instituições capazes de agir, diante da série de denúncias que vem sendo feitas, têm silenciado. Por isso mesmo, um dos principais argumentos esgrimidos pelos defensores de Moro e da lava jato, quando confrontados com as ilicitudes que permeiam o processo que conduziu Lula à prisão, é o de que o ex-presidente também foi condenado em segunda instância. É verdade, as regras jurídicas estão sendo ignoradas ou distorcidas há tempo e por vários agentes públicos, daí porque afirmar-se que há um problema mais profundo a ser enfrentado. Não nos reconhecemos como uma nação soberana, cujas regras construídas quando da abertura democrática, precisam ser respeitadas, sob pena de tornarmos inviável o convívio social, o desenvolvimento econômico e as possibilidades de vida minimamente decente.
No episódio em que Dilma foi afastada do poder, sem perder seus direitos políticos, os argumentos dos parlamentares não guardavam relação com crime de responsabilidade. O então deputado federal Jair Bolsonaro dedicou seu voto pelo impedimento ao almirante Ustra, o “pavor de Dilma Roussef”, instaurando uma ruptura de todos os valores de convívio social construídos a partir de 1988, cujos efeitos ainda estão sendo sentidos. Dois dias depois do impedimento, o governo interino de Michel Temer aprovou lei que permite as chamadas “pedaladas fiscais”. Em 2017, o mesmo parlamento transformou um projeto de lei com 11 artigos, através de 850 emendas de setores ligados ao grande capital, em um código empresarial votado em regime de urgência e colocado em prática em poucos meses, desconfigurando a legislação trabalhista e asfixiando os sindicatos.
Sabemos que, sendo linguagem, também o Direito é algo vivo, que se modifica em conformidade com o tempo e com o jogo de forças do cenário político-econômico. Acontece que para podermos seguir vivendo em um Estado Democrático de Direito, com algum grau de soberania, algumas premissas devem ser observadas, pois a democracia não importa apenas para fazer valer a ordem do capital, permitir a troca, a produção e o consumo com um mínimo de previsibilidade. Importa também para que os problemas reais sejam debatidos e enfrentados, para que se construa uma lógica de convívio social que realmente seja boa para a maioria. O estado de exceção em que estamos mergulhados impede esse enfrentamento e promove um desvio de discurso, que interdita o debate sobre o que está acontecendo em nosso país.
Jair Bolsonaro segue governando por decreto, manifestando sua concordância com o trabalho infantil, fazendo apologia à exploração sexual das mulheres brasileiras e ao preconceito contra nordestinos, negando a fome de milhões de brasileiros ou a tortura havida no período de ditadura civil-militar e destruindo a educação pública de qualidade, enquanto esvazia ou elimina instituições que servem para o controle da efetividade de normas sociais, como o Ministério do Trabalho. Esses temas não estão sendo enfrentados com a gravidade que merecem. Ao contrário, o atual presidente sente-se tão acima da ordem jurídica, que não vê problemas em indicar o próprio filho, sem outra experiência do que a declarada – ter fritado hambúrguer e feito intercambio – para o cargo de embaixador do Brasil junto aos EUA.
Enquanto isso, a PEC 06, que propõe o mais completo desmanche no sistema de seguridade social, teve seu texto base aprovado no último dia 10 de julho, com 379 votos e com as bençãos da grande mídia. E o foi mediante compra votos, pois o governo liberou cerca de 2,5 bilhões de reais para emendas de parlamentares, enquanto contingenciou o orçamento de 2019 em R$ 31,224 bilhões. Originalmente, o governo teria de contingenciar R$ 2,252 bilhões, mas a equipe econômica usou R$ 809 milhões de uma reserva de emergência criada em março, reduzindo o valor do bloqueio adicional para R$ 1,443 bilhão. Sabemos para onde esse dinheiro está indo.
A MP 881, agora PLC 27 de 2017, uma declaração de princípios da liberdade econômica contrários à espinha dorsal da nossa Constituição, segundo a qual nossa economia deve guiar-se pelos ditames da justiça social, foi transformada, em razão de mais de 300 emendas apresentadas, em instrumento de mais destruição das regras de proteção a quem trabalha. Apenas no campo das relações de trabalho, a proposta estabelece, entre outras coisas, impedimento de aplicação da legislação trabalhista a quem ganha até 30 vezes o salário mínimo, autorização de trabalhos em domingos e feriados, possibilidade de registro de jornada “por exceção” e ausência de controle de horário no meio rural.
A retórica do combate à corrupção desaparece exatamente quando estamos diante de um governo ostensivamente corrupto. É um silêncio eloquente, que compromete nossa soberania, pois revela concordância ou, no mínimo, desinteresse pelo verdadeiro saque predatório de tudo o que fundamenta a tentativa de instauração de um Estado Social no Brasil. O movimento de recrudescimento de valores e de endurecimento das teias de dominação do capital invade todos os âmbitos de convívio humano e irá determinar um retrocesso de proporções que ainda sequer conseguimos dimensionar, especialmente porque estamos paralisados diante dele, sem conseguir reagir de modo adequado.
O fato de que em 2018 foi eleita uma plataforma de governo que já anunciava o ataque frontal a direitos sociais não dá conta de explicar esse atordoamento. Em meio ano de mandato, o governo já conseguiu ir além até do que seus eleitores imaginavam e rompeu, claramente, com o único discurso em favor da soberania, que sustentou nas eleições: o combate à corrupção. O discurso era falso e muitos de nós já sabíamos disso, mas é importante debater com a sociedade, com profundidade e urgência, o que esse engodo representa para uma nação que se pretenda dona das próprias riquezas naturais, economicamente saudável e com estrutura suficiente para não permitir que parcela significativa de sua população seja relegada a mais absoluta miséria.
A supressão de direitos sociais implica perda da capacidade de consumo, cuja consequência óbvia é a recessão econômica, pois sem consumo não há produção e circulação de mercadorias e serviços. O descaso para com as riquezas naturais agravará problemas ambientais que já comprometem a possibilidade de vida no planeta. O discurso preconceituoso ou simplesmente mentiroso impede o enfrentamento de problemas graves como o feminicídio, a xenofobia e a fome que assola um número cada vez maior de famílias brasileiras. Essa verdadeira política pública de eliminação de pessoas e de estruturas que garantem o não esgarçamento do tecido social comprometerá a todas e todos, sem exceção, pois representa, de modo imediato, aumento da violência, da pobreza e do adoecimento social. Sob qualquer perspectiva de análise, se o programa de destruição colocado em curso seguir, o panorama é catastrófico.
Há uma razão histórica, para os parâmetros de convívio social que elegemos em 1988, cujos objetivos incluem a construção de uma sociedade solidária, que não pode ser simplesmente descartada.
É hora de retomarmos a importância de fazer Política, no melhor sentido aristotélico, preocupando-se e ocupando-se do que é público, do que nos interessa a todas e todos. É preciso reivindicar a ressignificação de nossos símbolos e de nossa função, como partícipes de um país enorme, composto por uma população tão heterogênea e sofrida, quanto merecedora de atitudes solidárias e civicamente comprometidas, que recuperem um sentido plural e político de luta coletiva, para que possamos superar, através dessa luta, a escuridão do tempo presente.
Fonte: Redação Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) – Edição: Marcelo Ferreira