Mês a mês, a rotina dos jornalistas brasileiros está mais precária e exposta a riscos. Com a crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, intensificou-se desemprego, baixos salários e condições de trabalho inadequadas. Ao mesmo tempo, denúncias de corrupção, lavagem de dinheiro e a crise política tornam o exercício dos profissionais da imprensa ainda mais difícil. Por isso, retomamos a série de entrevistas do objETHOS sobre ética jornalística e pandemia com a presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) Maria José Braga. Ela analisa as condições de trabalho, exposição a riscos e a violência contra profissionais brasileiros na atual conjuntura.
De acordo com Maria José Braga, o ataque verbal é o principal tipo de violência sofrido pelos jornalistas brasileiros, conforme mapeado pela entidade que representa. Apesar de não ter sido verificado um crescimento significativo nos ataques a jornalistas brasileiros até o final de junho, quando foi realizada esta entrevista, Braga afirma que o negacionismo se tornou mais um pretexto para agredi-los, ao mesmo tempo em que se busca descredibilizar o conteúdo trazido pela mídia sobre o tema. “Dessa forma, na atualidade, o principal risco que os jornalistas sofrem, excluída a questão da saúde, é de se tornarem alvo dos ataques (a maioria verbais e virtuais) e perseguições do presidente da República e seus seguidores”.
Outro pano de fundo recorrente para os ataques virtuais e ao vivo são casos de corrupção e denúncias envolvendo políticos. No último domingo (23), após um repórter de O Globo perguntar por que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu R$ 89 mil reais de Fabrício Queiroz, Jair Bolsonaro o ameaçou dizendo que tinha “vontade de dar uma porrada” no profissional.
No entanto, até a publicação desta entrevista, a pergunta continuava em aberto: por que Michelle Bolsonaro recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz? E por que a questão é tão incômoda a ponto de um jornalista ser ameaçado fisicamente pelo presidente da República?
A hashtag #RespondeBolsonaro chegou aos trending topics do Twitter e usuários passaram a viralizar a pergunta supostamente incômoda, assim como apoiaram jornalistas e emitiram notas de repúdio. Por outro lado, a declaração também reverberou mais ataques aos profissionais da imprensa nas plataformas sociais, incluindo ameaças de violência física.
Casos como esse não são comuns. Ataques verbais, assédio moral, tentativas de intimidação e descredibilização da imprensa, porém, já viraram rotina no expediente do chefe de Estado brasileiro. Apenas no primeiro semestre de 2020 a FENAJ mapeou 245 ataques feitos pelo presidente da República contra os jornalistas. Muitas falas feitas offline são publicadas nas plataformas sociais – ao ganhar eco no ambiente online, podem escalar para promessas de agressão física e outras formas de intimidação.
Apesar de não ser a única fonte de motivação da violência contra jornalistas e sua liberdade de expressão, o bolsonarismo desponta como importante estopim nas agressões contra a imprensa brasileira, analisa Maria José Braga na entrevista abaixo. Para a presidenta da Fenaj, são violências que afetam principalmente a saúde mental dos jornalistas, que estão “permanentemente apreensivos e sob estresse”. Confira:
“É importante registrar ocorrência policial em todos os casos de agressões, mesmo as virtuais, porque os agressores precisam ser identificados e punidos”
Diferentes estudos e levantamentos feitos pela FENAJ indicam que as condições de trabalho dos jornalistas brasileiros são precárias e expõem os profissionais a diferentes tipos de riscos, como stress e adoecimento físico e mental. A pandemia do coronavírus trouxe alguma intensificação nesse quadro? Quais as principais situações de risco verificadas ou reportadas para a FENAJ?
A categoria dos jornalistas foi uma das primeiras a sofrer a precarização das relações de trabalho no Brasil. Antes mesmo da contrarreforma trabalhista, aprovada no governo Temer e em vigor desde 2017, os jornalistas já enfrentavam problemas nas relações de trabalho, como a chamada pejotização (profissionais obrigados a criar uma empresa – pessoa jurídica – para serem contratados), os trabalhos temporários (freeelancer) e desrespeitos à jornada de trabalho contratada. Além de problema nas relações de trabalho, também enfrentavam e continuam enfrentando problemas nas condições: sobrecarga, pressões variadas, assédios etc, que geram estresse e adoecimentos físicos e mentais.
Com a pandemia provocada pelo novo coronavírus, tanto as relações quanto as condições de trabalho foram ainda mais pioradas. Nas relações de trabalho, o governo brasileiro autorizou a redução das jornadas com diminuição de salários, num momento em que os profissionais estão trabalhando mais. Várias empresas de comunicação, inclusive de grande porte, fizeram o corte de 25% nos salários e na jornada, mas sabemos que muito dificilmente a redução na jornada será respeitada, mantendo-se somente a redução salarial.
O governo, a pretexto de preservar empregos, também autorizou a suspensão de contratos, sem qualquer remuneração ao trabalhador por parte das empresas, apenas com recebimento do equivalente ao seguro desemprego, pago pelo governo, que acarreta grande perda de renda. Mas, mais grave ainda, são as demissões pura e simples que estão ocorrendo, deixando os profissionais em total desamparo.
Pesquisa realizada em abril pela Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), com participação expressiva dos jornalistas brasileiros, revelou que 2/3 dos jornalistas, empregados e freelancers sofreram cortes salariais, perda de empregos ou tiveram suas condições de trabalho pioradas durante a pandemia. A situação é a mesma em quase todos os países do mundo.
E há, ainda, as questões de saúde relacionadas diretamente à pandemia. Jornalistas continuam trabalhando, em muitos casos, presencialmente, indo às ruas. Com isso estão expostos ao risco de infecção pelo novo coronavírus. Os Sindicatos de Jornalistas pediram medidas de proteção e segurança sanitária às empresas empregadoras, mas nem todas adotaram e temos casos de infecção e morte entre a categoria.
Durante a pandemia de coronavírus, manifestações públicas contrárias aos jornalistas são cada vez mais comuns, motivadas por discursos negacionistas e ataques diretos contra veículos e profissionais. Como você avalia esta situação em relação ao cenário pré-coronavírus? Houve alguma intensificação do quadro no Brasil? Quais os principais riscos aos quais os jornalistas brasileiros estão expostos?
Não identificamos um crescimento significativo no número de agressões a jornalistas em razão da cobertura jornalísticas da pandemia provocada pelo novo coronavírus. A cobertura jornalística passou a ser mais um pretexto de grupos/pessoas identificadas com o bolsonarismo e que seguem o presidente também na sua postura de negar a ciência e, neste caso específico, de negar a necessidade de medidas governamentais para a contenção da pandemia e proteção da população. Antes da pandemia e em todo seu curso, qualquer crítica ou cobertura jornalística que não fosse favorável ao governo era motivo de reação dos grupos bolsonaristas.
Dessa forma, na atualidade, o principal risco que os jornalistas sofrem, excluída a questão da saúde, é de se tornarem alvo dos ataques (a maioria verbais e virtuais) e perseguições do presidente da República e seus seguidores.
Dentre as diferentes formas de violência contra jornalistas, como agressões físicas e verbais, assédios, ataques virtuais e ameaças, há alguma predominante no caso do Brasil atual (imerso a uma crise sanitária, política e econômica)?
Sim, a violência predominante na atualidade é a agressão verbal, seja desferida presencialmente seja por meio virtual, especialmente por meio das redes sociais. Jornalistas estão sendo xingados e, em alguns casos, tendo dados pessoais e familiares expostos publicamente, numa clara tentativa de intimidação.
As ameaças aos jornalistas brasileiros possuem as mesmas motivações em todo o país ou elas diferem de região para região? Há algum lugar onde os profissionais da mídia sofrem mais riscos? E quem são os principais agressores?
A motivação para as agressões verbais e ameaças a jornalistas é sempre o descontentamento com o trabalho jornalístico Ele cresce na medida em que o jornalismo mais cumpre o seu papel de levar informações de interesse público à sociedade. Na maioria das vezes, o jornalismo revela que interesses privados estão sendo privilegiados, e isso desagrada os beneficiários dos privilégios. É o interesse privado tentando se sobrepor ao interesse público, não importando se para isso é preciso passar por cima da legalidade.
Se a motivação é o descontentamento, o objetivo quase sempre é a intimidação e o cerceamento à difusão das informações de interesse público. Mas, com a ascensão do bolsonarismo, identificamos um aspecto diferenciado: muitos ataques, cometidos pelo presidente ou por seus seguidores, têm o objetivo claro de descredibilizar a imprensa e os jornalistas.
O Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa, da FENAJ, identificou como principal agressor o próprio presidente da República, que adotou como tática atacar a imprensa genericamente e jornalistas individualmente para tentar desacreditar o trabalho jornalístico. O objetivo do presidente é um só: fazer com que seus seguidores não deem crédito às informações de interesse público que são produzidas pelos jornalistas e divulgadas pelos meios de comunicação, e continuem se informando por meio das “bolhas” bolsonaristas, nas quais o discurso é de apoio total ao presidente, independentemente do que ele fale ou faça.
E não há um local, região, Estado ou município, onde os profissionais estejam totalmente protegidos, mas a Região Sudeste e, em especial, o estado de São Paulo, tem sido, nos últimos anos, a região com maior número de casos de violência contra jornalistas. Em 2019, a Região Centro-Oeste passou à condição de segunda mais violenta, pelos constantes ataques a jornalistas por parte do presidente e a maioria ocorridos em Brasília.
“O objetivo do presidente é um só: fazer com que seus seguidores não deem crédito às informações de interesse público”
Como a crescente violência contra os jornalistas afeta o trabalho realizado pela imprensa brasileira e a informação veiculada para a sociedade?
A violência contra os jornalistas afeta, principalmente, sua saúde emocional. Os profissionais estão permanentemente apreensivos e sob estresse. Em muitos casos, chegam ao adoecimento e desevolvem sofrimentos mentais como síndrome do pânico, que se tornou comum nas redações brasileiras. Mas o senso de responsabilidade dos profissionais jornalistas tem feito com que a violência não afete a qualidade do jornalismo produzido e veiculado para a sociedade. O que afeta visivelmente a qualidade da informação jornalística é, principalmente, o enxugamento das redações e a piora das condições de trabalho. O corte no número de postos de trabalho tem como consequência a sobrecarga para os que continuam empregados e a produção de notícias apressadas, muitas vezes sem a apuração e o aprofundamento necessários.
As pressões políticas, econômicas e sociais sobre os jornalistas podem desencadear situações de censura e autocensura da imprensa. A FENAJ observa esse tipo de condição no Brasil? Como ela ocorre? Houve algum crescimento no número de ocorrências durante a pandemia?
Pressões políticas e econômicas acarretam censura e autocensura nas redações. Para citar como exemplo, no dia 23 de maio, o empresário Silvio Santos, dono do SBT, censurou integralmente o principal telejornal de sua emissora. O SBT Brasil não foi ao ar e, segundo denúncias dos trabalhadores, a decisão do empresário foi em razão de reclamação de integrantes do governo Bolsonaro da cobertura feita no dia anterior, sobre a divulgação de vídeo da reunião ministerial ocorrida em abril, citada pelo ex-minsitro Sérgio Moro, como prova da interferência do presidente na Polícia Federal.
As pressões políticas e econômicas ocorrem de diversas maneiras, mas geralmente são tratadas diretamente pelas cúpulas das empresas de comunicação. As redações geralmente só são comunicadas que determinado assunto não será tratado ou terá de ser abordado de uma maneira pré-determinada.
Mas essa censura (ou autocensura) quase nunca chega ao conhecimento da FENAJ e dos Sindicatos de Jornalistas, porque existe um medo muito grande em denunciá-la. É o tipo de violência contra jornalistas e contra a liberdade de imprensa que menos chega ao conhecimento da sociedade. E não temos nenhum relato de caso relacionado diretamente à pandemia.
Há algum perfil de profissional que sofre mais pressões? E com relação aos grupos de pressão à livre expressão jornalística, quais os principais opressores?
Se a censura quase nunca é denunciada, não conseguimos identificar o perfil do profissional que mais é censurado ou que mais se autocensura. Acreditamos, entretanto, que os jornalistas dedicados às coberturas de economia e/ou política estejam mais suscetíveis às pressões e à censura, justamente pelas suas áreas de cobertura jornalística. Mas insisto que a censura, por pressões políticas e econômicas, é sempre velada.
Infelizmente, temos no Brasil casos de censura explícita do Poder Judiciário, que tem determinado a exclusão de conteúdos jornalísticos, impedido a cobertura de determinados assuntos e até mesmo a citação de nomes de pessoas, sempre impondo a observância das decisões judiciais (inconstitucionais) por meio de pesadas multas.
Em relação à defesa da liberdade de imprensa, ela é feita pelas entidades sindicais representativas dos jornalistas (FENAJ e Sindicatos dos Jornalistas), por entidade sindicais dos demais trabalhadores da comunicação, pelas instituições de ensino do Jornalismo, por ONGs que trabalham questões da comunicação/jornalismo e por diversas outras entidades da sociedade, quando são instadas a se pronunciarem.
E não há opositores declarados. Existem grupos protofascistas, que não se revelam como tais, mas agem claramente contra a liberdade de imprensa, principalmente atacando jornalistas. Por isso, é preciso atenção por parte dos cidadãos e das cidadãs.
Em caso de ataques ou censura a jornalistas, como é possível denunciar?
A FENAJ e os Sindicatos de Jornalistas do Brasil orientam os jornalistas a denunciar qualquer caso de violência contra categoria ao Sindicato, que vai tornar a denúncia pública e também apoiar o jornalista na formalização da denúncia criminal.
Ressaltamos que é importante registrar ocorrência policial em todos os casos de agressões, mesmo as virtuais, porque os agressores precisam ser identificados e punidos. Quando um agressor nem mesmo é chamado a responder pelo seu ato de violência, de alguma forma ele se sente autorizado (pelo Estado e pela sociedade) a continuar agindo violentamente. A impunidade é combustível para a violência.
Fonte: Fenaj