Jornalista conversou com o Brasil de Fato RS sobre seu novo livro que analisa desmonte dos direitos após o golpe de 2016
O jornalista e pesquisador Alexandre Haubrich lançou recentemente seu novo livro “Direitos golpeados – Os ataques aos trabalhadores brasileiros de 2016 a 2022”, publicado pela Editora Insular. Os capítulos tratam da reforma trabalhista, da reforma da Previdência, da reforma administrativa e de outras medidas desse tipo. A apresentação foi escrita pelo ex-governador do RS Tarso Genro. Ao final, uma entrevista com a pesquisadora da Unicamp Marilane Teixeira faz o fecho das discussões do livro.
Alexandre é doutor em Comunicação e Informação pela Ufrgs e, também, escreveu os livros Mídias Alternativas – A Palavra da Rebeldia (Insular) e nada será como antes – 2013, o ano que não acabou na cidade onde tudo começou (Libretos).
A origem de todo o processo do livro foi a sua tese de doutorado em Comunicação e Informação, apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2020. Segundo ele, a tese tem como título “O debate público sobre a reforma trabalhista de 2017 no Brasil: embates discursivos na disputa entre trabalho e capital”. “Como se percebe pelo título, essa pesquisa tratou especificamente da reforma trabalhista. Mas eu sempre entendi essa reforma como parte de um projeto maior, de uma ampla agenda de desmonte de direitos e de redirecionamento das funções do Estado, implementada a partir do golpe de 2016 – e que motivou esse golpe, retirando Dilma Rousseff da Presidência”, explica.
A publicação tem o apoio de oito sindicatos: Aserghc, Sindipolo/RS, Sintrajufe/RS, STIMMMEC, Sindjus/RS, Ugeirm, Simpe/RS e Assufrgs.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato RS – A aprovação das reformas trabalhista e da Previdência me lembram o texto de Bertold Brecht “Se os tubarões fossem homens”. A partir da tua pesquisa, quais os principais fatores que levaram até mesmo os trabalhadores a acreditar que essas reformas eram necessárias?
Alexandre Haubrich – No início do governo de Michel Temer, quando foram lançadas as propostas de reforma trabalhista e previdenciária, houve um forte movimento da mídia burguesa, ou mídia hegemônica, no sentido de gerar um consenso em torno dessa agenda. A pesquisa apresentada no livro, em especial sobre a reforma trabalhista – que acabou aprovada, ao contrário da reforma da Previdência, que passaria apenas com Jair Bolsonaro –, demonstra que esse setor da mídia foi um dos impulsionadores e sustentáculos principais desses projetos.
Mesmo assim, e mesmo com a mídia extremamente centralizada que temos no país, a população não comprou esse discurso. As pesquisas de opinião da época deixavam claro que a grande maioria da população compreendia o significado da reforma trabalhista – retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras – e era pessimista em relação aos seus resultados.
Tanto pesquisas do Datafolha quanto do Vox Populi apontaram nessa direção. As ruas também demonstraram a insatisfação, com grandes mobilizações que uniram a contestação às reformas ao chamado por “Fora Temer”. Isso não foi suficiente para barrar a reforma porque os interesses envolvidos estavam muito compactados em torno do grande empresariado, da mídia hegemônica, dos parlamentares governistas e de um governo originado em um golpe que foi dado justamente para fazer avançar essa agenda.
BdF RS – O que te levou a fazer essa pesquisa que deu origem ao livro?
Alexandre – A origem de todo o processo do livro foi a minha tese de doutorado em Comunicação e Informação, apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2020. A tese tem como título “O debate público sobre a reforma trabalhista de 2017 no Brasil: embates discursivos na disputa entre trabalho e capital”. Como se percebe pelo título, essa pesquisa tratou especificamente da reforma trabalhista. Mas eu sempre entendi essa reforma como parte de um projeto maior, de uma ampla agenda de desmonte de direitos e de redirecionamento das funções do Estado, implementada a partir do golpe de 2016 – e que motivou esse golpe, retirando Dilma Rousseff da Presidência.
A construção do livro passa por esse raciocínio, conectando as discussões sobre os diferentes projetos e propostas que, nos governos Temer e Bolsonaro, retiraram ou tentaram retirar direitos dos trabalhadores. Além disso, me motivou o entendimento de que a pesquisa feita para a tese e o conhecimento organizado a partir daí precisavam extravasar a universidade, ganhar uma forma de leitura mais amigável e servir como instrumento de denúncia do que foi feito e de luta pelo que temos que recuperar.
Livro é resultado de sua tese de doutorado em Comunicação e Informação pela UFRGS / Divulgação
BdF RS – Quais são os principais interesses envolvidos na aprovação destas reformas?
Alexandre – Há dois eixos centrais em todas as reformas discutidas no livro – e em outras medidas implementadas ou apresentadas pelos últimos dois governos. Em primeiro lugar, o desmonte da legislação protetiva dos trabalhadores, que permite ao grande empresariado – urbano e rural – a contratação de trabalhadores de forma precária, sem oferecer direitos que antes eram garantidos. O interesse óbvio aí envolvido é a ampliação da margem de lucro dos empresários, em detrimento das necessidades dos trabalhadores.
Não se trata de esvaziar o Estado, mas de ordenar suas atividades conforme o que buscam os “de cima”, ou seja, acumulação de poder econômico, político e simbólico
O segundo eixo dessa agenda é o redirecionamento das funções do Estado para atender aos interesses das elites econômicas e políticas. Não que o Estado brasileiro antes fosse uma maravilha, um exemplo de democracia e de garantia de direitos. Claro que não. Mas, desde o governo Temer, e sendo aprofundado por Bolsonaro, há um deslocamento em direção a uma parcela cada vez menor da população. Não se trata de esvaziar o Estado, mas de ordenar suas atividades conforme o que buscam os “de cima”, ou seja, acumulação de poder econômico, político e simbólico. Então temos, por exemplo, a tentativa de reforma administrativa, felizmente refutada até agora pela luta dos trabalhadores e pela inabilidade de Bolsonaro, um projeto que visa desmontar uma estrutura de Estado voltada à atenção de direitos da população para reconstruí-la como currais políticos e como meio para alguns “amigos do rei” fazerem dinheiro fácil.
BdF RS – Qual o papel do golpe de 2016 na aprovação da reforma?
Alexandre – É central. As “pedaladas” nada mais foram do que uma desculpa para depor um governo legítimo que não estava contemplando suficientemente os interesses mais urgentes do capital. Os documentos “Uma Ponte para o Futuro”, do PMDB, e “119 propostas para a competitividade com impacto fiscal nulo”, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), ambos divulgados antes da confirmação do impeachment de Dilma, são instrumentos de pressão do empresariado e de sua representação política e já apontam nesse sentido, defendendo a necessidade de uma reforma trabalhista e apresentando também outras demandas.
O documento do PMDB faz referência à “modernização” do Brasil, incluindo a proposta de “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais”. Já no caso da CNI, entre as 119 propostas apresentadas, 31 referem-se ao mundo do trabalho, sendo que 14 propõem alterações na CLT, em geral dialogando diretamente com o conteúdo da reforma trabalhista que depois seria proposta e aprovada.
As “pedaladas” nada mais foram do que uma desculpa para depor um governo legítimo que não estava contemplando suficientemente os interesses mais urgentes do capital
O próprio Temer já admitiu que Dilma não foi retirada da Presidência por conta das “pedaladas” ou de corrupção. O golpe abriu as comportas e, imediatamente, o governo Temer apresentou ao Congresso a proposta de emenda à Constituição do teto de gastos, a reforma trabalhista e a reforma da Previdência – esta última ele não conseguiu aprovar, mas Bolsonaro sim, dificultando a aposentadoria de milhões de brasileiros e brasileiras.
BdF RS – A promessa de criar mais empregos com a reforma trabalhista foi cumprida?
Alexandre – Não. A pesquisa apresentada no livro identifica claramente esse como o maior “argumento” do governo e de seus apoiadores para tentar empurrar a reforma trabalhista para a população. Na verdade, um pretexto para aumentar a margem de lucro dos empresários. E o livro também demonstra os resultados disso. As taxas de desemprego, desde 2017, tiveram momentos de oscilação para cima e para baixo, mas, em geral, podemos falar de um quadro mais ou menos estável – com exceção de um período específico de estouro dessa taxa em meados do governo Bolsonaro.
Mesmo os estudos sérios que apontam que pode ter havido algum nível de geração de empregos por conta da reforma apresentam números muito inferiores ao que era prometido pelo governo e identificam, também, o grande problema gerado pela reforma e que já era advertido pelos opositores ao projeto: a precarização do trabalho.
O Brasil vive uma explosão do trabalho por conta própria, do trabalho informal, e mesmo os postos de trabalho com carteira assinada garantem poucos direitos aos trabalhadores, além de uma renda média cada vez menor. A reforma legalizou as más práticas que de fato existiam de forma mais esparsa e, dessa forma, as expandiu como regra a ser normalizada, em vez de exceção a ser combatida. Os dados de trabalho precário no Brasil hoje são alarmantes, e o pior é que são, em geral, situações que operam dentro da lei – justamente a lei conforme foi formulada no contexto da reforma trabalhista.
Os dados de trabalho precário no Brasil hoje são alarmantes, e o pior é que são, em geral, situações que operam dentro da lei
BdF RS – O ministro da Economia, Paulo Guedes, já disse que se Jair Bolsonaro for reeleito fará a reforma administrativa. A campanha contra o serviço público e a defesa do Estado Mínimo vem desde a década de 1990, com a entrada do neoliberalismo no país. Quais os mitos que envolvem esta reforma?
Alexandre – Da mesma forma que a reforma trabalhista foi apresentada pelo governo Temer publicamente a partir de mitos como o da geração de empregos, a reforma administrativa também tem os seus. Um exemplo é a questão da estabilidade, apontada como um caminho para a acomodação e a piora de qualidade do trabalho entregue pelos servidores. Na verdade, a estabilidade é uma garantia para a sociedade: ela protege os servidores de ingerências políticas, sustenta a manutenção e a continuidade de políticas públicas de Estado e a prestação dos serviços. É, também, uma proteção contra a corrupção, já que, sem ela, servidores poderiam ser mais facilmente pressionados por políticos ou outros agentes corruptos.
Um segundo mito que eu destacaria é o da “modernização”, em construção muito semelhante a feita no contexto da reforma trabalhista. Bolsonaro e Paulo Guedes disseram que a reforma administrativa iria “modernizar” os serviços públicos, uma palavra vazia que tenta passar algo positivo, mas que esconde que essa suposta modernização é, na verdade, o desmonte dos serviços públicos oferecidos à população e dos direitos de quem presta esses serviços.
“A reforma trabalhista precisa ser revogada se quisermos devolver a dignidade aos trabalhadores e trabalhadoras”, defende Alexandre / Foto: Bruna Andrade
BdF RS – Qual seria o caminho para uma democratização da comunicação e a possibilidade para mais vozes serem ouvidas?
Alexandre – A luta pela democratização da comunicação no Brasil vem de décadas. Não é uma discussão simples e é preciso ter muito cuidado e responsabilidade com as medidas a serem tomadas nesse sentido. Mas posso apontar como algumas das mais importantes a horizontalização das verbas de publicidade, o lançamento de editais e a construção de outras políticas públicas de fomento às mídias alternativas e comunitárias, a realização de um esforço de legalização das rádios comunitárias, a criação de um Conselho de Comunicação (aos moldes dos conselhos de outras áreas, como a Medicina). Também é preciso avançar em discussões sobre a regulação das plataformas de redes sociais e da internet em geral.
BdF RS – É possível reverter a reforma trabalhista? Qual seria a melhor forma?
Alexandre – A reforma trabalhista precisa ser revogada se quisermos devolver a dignidade aos trabalhadores e trabalhadoras. Isso pode ser feito por um novo projeto de lei, por uma proposta de emenda à Constituição – que, neste caso, colocaria os direitos recuperados na Constituição Federal – ou mesmo por uma Medida Provisória. De qualquer forma, depende de vontade política do Executivo e do Congresso. Isso certamente não aconteceria sob o governo Bolsonaro ou sob outro governo neoliberal.
Temos que eleger um presidente e um Congresso comprometidos com as pautas dos trabalhadores
Assim, temos que eleger um presidente e um Congresso comprometidos com as pautas dos trabalhadores. E, além das eleições, é preciso que haja mobilizações nas ruas, puxadas pelas centrais sindicais, sindicatos e movimentos populares, para revogar a reforma de 2017 na íntegra e, quem sabe, propor novas alterações trabalhistas que beneficiem e protejam os trabalhadores que hoje estão expostos às novas lógicas das relações de trabalho, crescentemente precarizadas.
BdF RS – Que caminhos sua pesquisa aponta para a retomada do Estado do Bem-estar social e cumprimento da Constituição de 1988?
Alexandre – Um dos caminhos centrais nesse sentido é, sem dúvidas, aprofundar a democracia no país. Além de recuperar o que foi perdido nesse sentido a partir do golpe de 2016, e especialmente sob o governo Bolsonaro, temos que ampliar os mecanismos de participação popular nas decisões mais importantes para o país.
No Rio Grande do Sul, a mudança na Constituição estadual feita pelo governo de Eduardo Leite, com apoio majoritário na Assembleia Legislativa, é um exemplo justamente do oposto: foi derrubada da Constituição a necessidade de plebiscito para a privatização das estatais. Isso fecha os caminhos democráticos, torna a política cada vez mais distante da população e, assim, facilita a quebra de direitos. Então, a obrigatoriedade da realização de plebiscitos para definir questões como a venda de estatais é uma das pautas que pode ser pensada nesse sentido.
Outra é a inclusão na Constituição de direitos trabalhistas específicos e essenciais, de programas de transferência de renda, entre outros itens que garantam dignidade para o trabalho e para a vida das pessoas. Isso pode ser feito tanto por meio de PECs quanto a partir de uma Constituinte Exclusiva, discussão que em algum momento a sociedade brasileira precisará fazer para reorientar os rumos do país.
BdF RS – Hoje, nos EUA, pátria do liberalismo, está havendo uma retomada da sindicalização, o que se atribui, por exemplo, à inflação alta. Sob outra presidência, você acha que pode ocorrer também aqui?
Alexandre – O problema da baixa adesão dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil a sindicatos não é novo, mas vem sendo agravado nos últimos anos por diversos fatores. Um deles é, sem dúvida, a perda de poder aquisitivo pela classe trabalhadora. Vemos o encolhimento da renda média, a redução ou congelamento de salários, enquanto a inflação – especialmente dos alimentos – cresce muito. Então, de fato, em muitos casos, cada real que pode ser economizado com outros gastos – como o pagamento da filiação sindical – é importante.
A reforma trabalhista de 2017 acelerou a criação de um enorme exército de trabalhadores informais, precários ou “por conta própria”
Mas há outros fatores que, a meu ver, têm peso maior, pelo menos no caso brasileiro, para gerar a baixa sindicalização. Estou me referindo, por exemplo, como fator histórico, à concentração da mídia, que divulga todos os dias um ideário antissindical. E, neste momento, a fatores conjunturais – embora relacionados a questões estruturais – como as mudanças na organização do trabalho, que deixam mesmo os trabalhadores formais, com carteira assinada, crescentemente isolados, em especial se considerarmos os terceirizados.
Para os demais, a situação é ainda pior: a reforma trabalhista de 2017 acelerou a criação de um enorme exército de trabalhadores informais, precários ou “por conta própria”, com rendimentos muito baixos, poucos ou nenhum direito trabalhista e sem qualquer relação formal de pertencimento a uma categoria trabalhista, menos ainda à classe trabalhadora.
Para melhorarmos os índices de sindicalização e fortalecermos os sindicatos, essas entidades precisam enfrentar abertamente essa realidade, adaptar algumas práticas e ter mais clareza do contexto social em que estamos inseridos, para poder atuar melhor sobre esse contexto. É um desafio muito duro, sem dúvidas, e que não tem soluções fáceis, mas que é necessário para fortalecermos, a partir dos sindicatos e centrais, as lutas coletivas que vão conquistar um país melhor para a classe trabalhadora.
Katia Marko | Brasil de Fato | Porto Alegre | 24 de Setembro de 2022 às 08:09 | Edição: Marcelo Ferreira | * Colaboração de Ayrton Centeno