Com liminar garantindo liberdade de expressão, cartunistas levam desenhos de volta à Câmara de Porto Alegre
Marcos Corbari e Marcelo Ferreira/Brasil de Fato

 

A reabertura da exposição, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, contou com a presença dos jornalistas Kátia Marko e Milton Simas Jr., diretores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS (Sindjors), e do integrante da Grafar, diretor da FENAJ e da Comissão de Ética do Sindjors, o cartunista Celso Schröder.

 

Uma mostra de desenhos de humor, propostos por artistas que interpretaram o tempo atual da história brasileira à luz do conceito “Independência em Risco” desencadeou uma série de atos – prós e contrários – do começo a meados do mês de setembro, em Porto Alegre, RS. Fato grave, menos de 24 horas depois de aberta a exposição, que tinha como instalação o espaço público da Câmara de Vereadores da capital gaúcha, foi denunciada por um vereador descontente e censurada pela presidência da casa. Em um dos primeiros atos simbólicos que multiplicou o potencial expressivo da mostra, os painéis onde estavam fixados os desenhos foram acorrentados junto a um corredor lateral da casa. Depois de muitas articulações, atos públicos, manifestações de apoio e, por fim, uma representação estabelecida na justiça por meio de duas associações (Juristas pela Democracia e Pais e Mães pela Democracia) uma liminar estabeleceu a alforria dos desenhos acorrentados e seu retorno ao espaço público de exposição. Assim foi feito, desde o final da tarde de segunda-feira, 16, em ato que mais do que celebrar a vitória da arte sobre os censores, ganhou contornos de manifesto público em defesa da democracia e contra todos e todas que têm se deixado seduzir pelos obscurantismo que instalou-se em elevadas instâncias de poder.

 

Cartunista Celso Schröder 

 

“É a primeira vez que eu participo de uma reabertura, uma reinstalação de uma exposição em que uma obra minha faz parte”, comentou o cartunista Celso Schröder em tom de bom humor, dando contornos ao absurdo que todo o episódio representou. Logo em seguida, porém, o tom foi mais grave: “Isso acontece por dois grandes motivos: primeiro pela intolerância instalada no país, assentada na mediocridade, no obscurantismo, na burrice e na violência que foi o que efetivamente ocasionou a censura. Mas por outro lado tivemos uma enorme solidariedade vinda de muitos lados, um sentimento democrático que não desaparece do povo brasileiro, do povo gaúcho e, principalmente, do povo porto-alegrense e que nos fez continuar, resistir, enfrentar e reagir”, explicou.

 

“Foi uma vitória da democracia, sabemos que a repercussão que essa exposição tomou foi por conta dos atos ilegais que foram tomados contra ela, mas o mais importante é que temos no final o reestabelecimento da liberdade e da democracia”, comentou o vereador Marcelo Sgarbossa (PT), cujo gabinete foi o responsável pela organização da exposição juntamente com a Grafar. “Assim como muitos se manifestaram contrários à censura, também existiram muitos que deram razão para a arbitrariedade e exatamente por isso é muito importante que aconteça dessa forma, com o pronunciamento da justiça, colocando as coisas em seus devidos lugares e demonstrando que no final a democracia prevalece”, emendou.

 

Sgarbossa e alguns cartunistas da Grafar

 

“O que aconteceu aqui é uma receita, sabemos que tem havido movimentos de opinião plebiscitários de pessoas que se organizam de forma miliciana, ao arrepio da lei, se dando direito de exercer a censura”, ponderou o cartunista Edgar Vázquez. “Nós fomos pela lei e a lei se manifestou, isso nos lembra que temos que respeitar a Constituição do Brasil, que garante a todos a liberdade de expressão”, acrescentou. Para ele, é preciso se dar destaque exatamente para o viés que o limite de tudo o que está acontecendo não é o plebiscito das redes sociais, e sim a lei. “Colocar esses painéis de volta aqui, dá para se dizer metaforicamente que as coisas foram colocadas em seus lugares”, concluiu.

 

O presidente da Grafar (Grafistas Associados do RS), Leandro Bierhals, comentou apontando para o público presente no ato de reabertura e fazendo menção aos milhares de internautas que acompanhavam pela transmissão ao vivo da Rede Soberania, que “o melhor resultado da volta da exposição para esta casa são vocês, são as pessoas e associações que sentiram que é possível lutar contra esse arbítrio que está acontecendo no país todo”. A grande movimentação em defesa das obras e dos artistas surpreendeu positivamente e serve para demarcar um novo espaço: “Algumas pessoas estão pensando que podem dar um canetaço e passar por cima da Constituição, passar por cima das leis e fazer o que querem, mas não vai ser assim”. Hals agradeceu às 60 entidades que assinaram um manifesto em apoio aos artistas, em especial às duas associações que conduziram a representação na justiça.

 

Marcelo Prado, vice-presidente da Associação Mães e Pais pela Democracia, agradeceu a presença de todos no ato, relembrou a peça jurídica que foi escrita pelo jurista Renato Takahara, finalizando de forma econômica e eficiente na escolha das palavras: “Tenho duas palavras a dizer: tarefa cumprida!”. A presidenta da associação Aline Kerber também deixou o seu recado demarcando que “essa vitória importante nos desafia a seguir em frente, seguir nessa disputa, nessa narrativa, não recuando um milímetro frente ao combate a esse movimento obscurantista”. Takahara, por sua vez, repudiou o vereador Nagelstein, responsável pela primeira movimentação contrária à exposição e que redundou na censura praticada pela presidência da casa, naquele momento exercida pela vereadora Mônica Leal. “Nós confiamos no judiciário, nosso papel é fortalecer as instituições democráticas e fortalecendo essas instituições vamos estar fortalecendo a própria democracia”, completou.

 

Jorge Furtado (no centro) prestigiou o evento

 

O diretor de cinema Jorge furtado enalteceu a união como elemento decisivo para que o enfrentamento fosse vitorioso: “O importante é a gente estar juntos nessas horas e lutar contra a censura, não aceitar andar para trás.” Nos seus comentários, a valorização da arte como arma em defesa da democracia mereceu destaque: “Eu tenho certeza que a arte vai sobreviver e essa turma que está aí será só uma lembrança triste em breve”. Para o artista, os ataques que as mais diversas manifestações artísticas têm recebido representam um elogio, pois se estão incomodando “essa turma que está aí” é porque “estamos no caminho certo, estamos fazendo alguma coisa de muito bom”.

 

“Foi um momento relevante por se tratar da defesa da Constituição Federal, dos fundamentos da República, dos fundamentos do Estado de Direito, onde estão garantidos os direitos fundamentais do povo”, explicou Mário Madureira, da organização Juristas pela Democracia. “Assim como há o direito de todos à saúde, ao trabalho, a um meio ambiente saudável, à habitação, há também o direito de ir e vir e há a liberdade de se expressar”, acrescentou. Para o jurista, “ainda temos uma Constituição, ainda temos instituições democráticas que devem ser defendidas”. Avaliando a repercussão da exposição – mesmo nos dias em que as obras originais permaneceram acorrentadas – expressou que a ação de censura foi “contraproducente para aqueles que a engendraram, porque hoje essa exposição é muito mais conhecida do que seria se não tivesse sido censurada”. Além de ter despertado o debate sobre a liberdade de expressão em praticamente todo o país, a censura aos cartuns em Porto Alegre expôs ao mundo – via noticiário – os riscos que a democracia brasileira está sujeita.

 

Momento simbólico, retirada das correntes que envolviam as obras

 

Falando à reportagem do portal Sul21, o cartunista Vicente Marques, que também é membro da Grafar, afirmou que a decisão judicial que garantiu o retorno da exposição significa um marco importante para a arte gráfica e para outros tipos de manifestações artísticas. “Foi uma medida bastante importante, não conheço outra decisão no período recente que tenha tratado da censura política propriamente dita. Tivemos aqui no Rio Grande de Sul e em outros estados iniciativas de censura em diversos aspectos, mas neste caso foi prontamente respondida pelo Poder Judiciário e reconhecida pela presidente da Câmara que, mesmo tendo opinião contrária, decidiu não recorrer da decisão”, disse.

 

O ato encerrou com palavras de ordem enunciadas em uníssono anunciando “Arte livre, Censura nunca mais”.

 

Paralelos com SP e RJ

 

Manuela D’Ávila

 

“É um momento de celebração, de uma vitória importante, mas também que agreguemos forças para muitas outras lutas que estão pela frente”, refletiu Manuela D’Ávila, ex-deputada e candidata a vice-presidenta da República na última eleição. “A dirigente do PCdoB fez questão de relembrar outros dois momentos de conquistas garantidas pelo meio judicial na mesma semana, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que garantiram a devolução às escolas de material pedagógico recolhido e, também, a livre circulação de uma história em quadrinhos que foi alvo de tentativa de censura em um evento voltado à literatura. “É fundamental que a gente compreenda a necessidade de fortalecer as nossas instituições e principalmente de defender a democracia”, explicou. Manuela lembrou que em tempos passados os mesmo que hoje tentam censurar as manifestações de artistas que estão contrários ao governo federal, puderam manifestar-se livremente com críticas em relação a líderes do campo da esquerda, como Lula e Dilma. “Muitas vezes foram grosseiros, vulgares e violentos, e nós sempre buscamos contrapor pelo debate, não pela censura”.

 

Fernanda Melchiona

 

Outra autoridade presente que citou os recentes casos de flagrante transgressão aos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal em São Paulo e no Rio de Janeiro, foi a deputada federal Fernanda Melchiona (PSOL): “Infelizmente são tempos complexos, em que as liberdades democráticas estão permanentemente atacadas por um governo federal que abriu as porteiras do atraso com o que há de pior na política brasileira e empoderam com sua prática e seu discurso a ação dessas milícias bolsonaristas que ameaçam, que atacam, que querem exercer a censura”.

 

Para Melchiona, o procedimento com o qual a presidência da Câmara de Porto Alegre tentou censurar a exposição é muito semelhante ao ato do governador Dória, que com uma visão obtusa e reacionária tentou tirar 330 mil cartilhas e deixar estudantes sem livro de biologia para estudar na rede pública. Da mesma forma, como tentou fazer o prefeito Crivella no Rio de Janeiro, colocando a estrutura pública para impor censura a obras que poderiam fazer menção à causa LGBT. “Nos três casos houve uma reação democrática e a sociedade se manifestou, garantindo em uma combinação de movimento social com iniciativa jurídica a vitória. Todos foram derrotados e a democracia prevaleceu. É a nossa vez de lutar, é a nossa vez de resistir. Precisamos vencer o mais rápido possível as trevas, o Brasil é maior que o autoritarismo, o Brasil é maior que Bolsonaro” concluiu.

 

Ebook lançado

 

Concomitantemente à reabertura da exposição, foi lançado oficialmente o ebook homônimo, que trouxe a veiculação de todos os desenhos censurados em formato pdf free. Katia Marko, jornalista e editora do Brasil de Fato, comentou: “Logo após a censura que as charges sofreram aqui, mobilizamos o Brasil de Fato, o Instituto Cultural Padre Josimo e a Rede Soberania, juntamente com o SINDJORS, a FENAJ e o FNDC, com autorização da Grafar e o apoio do Gabinete do Vereador Sgarbossa, para publicar os desenhos integrantes da exposição em um ebook que já está disponível para download gratuito”. Conforme relatou, a ideia de todos é que se possa “mandar essa exposição para o mundo, pode compartilhar, utilizar como quiser, para que nunca mais aconteça o que aconteceu aqui”.

 

Clique aqui para baixar o ebook.

 

Nova exposição

Obras voltam ao saguão da Câmara

 

Empoderados pela vitória obtida via judicial e ressignificados pelo retorno dos desenhos ao espaço de exposição pública da Câmara de Vereadores, os cartunistas integrantes da Grafar aproveitaram para chamar o público para outra exposição cujo tema será centrado na Censura. Conforme explicou Marques ao Sul21, a ideia da nova exposição a ser aberta nessa terça-feira, 17, é “reunir charges recentes, incluindo as que haviam sido censuradas na Câmara, mas também uma retrospectiva de desenhos desde a época do final da ditadura militar”. Conforme explicou o artista, a mostra estará aberta ao público na sede do Clube de Cultura a partir das 19h30.

 

Assista à transmissão da reabertura pela Rede Soberania

 

https://www.facebook.com/redesoberania/videos/1133534713522193/

 

Edição: Marcelo Ferreira