Tereza Cruvinel (acima) narra, em tom de memória e bastidor, a criação da TV Brasil e o esforço coletivo que deu origem ao sistema público de comunicação, em 2007 – Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

 

O evento acontece nesta sexta-feira (7), às 18h, na sede do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região

 

A jornalista Tereza Cruvinel, que foi a primeira presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), lança em Porto Alegre o livro Memória de um Desafio – A guerra da TV pública e a criação do sistema EBC. O evento acontece nesta sexta-feira (7), às 18h, na sede do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (Rua General Câmara, 424 – Centro), com entrada gratuita. Além da sessão de autógrafos haverá colóquio com a presença do ex-governador Tarso Genro e mediação do jornalista Moisés Mendes, representante da Comissão Estadual de Ética do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJoRS).

 

O evento de lançamento conta com o apoio do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJoRS), do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários) e da Associação Riograndense de Imprensa (ARI).

 

A obra resgata o processo de implantação da comunicação pública no Brasil e os embates com a mídia corporativa. Cruvinel narra, em tom de memória e bastidor, a criação da TV Brasil e o esforço coletivo que deu origem ao sistema público de comunicação, em 2007.

 

O livro resgata o contexto político e cultural do período em que o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defenderam a criação de uma TV pública nacional. Coube a Tereza Cruvinel, a convite de Lula e do ministro Franklin Martins, liderar a implantação da EBC e colocar a TV Brasil no ar.

 

 

Tendo tido passagens marcantes por veículos como O Globo e GloboNews, a autora utiliza a obra para revelar as tensões entre jornalismo, poder e democracia. Além de narrar a fundação, o livro também reflete sobre os ataques sofridos pela EBC nos governos seguintes, bem como os atuais desafios de reconstrução da empresa no governo Lula.

 

Segundo Tereza Cruvinel, que contribuiu de forma crucial para a história da radiodifusão pública no país, “a história da comunicação pública no Brasil ainda está sendo escrita, e compreender seus bastidores é fundamental para defender a pluralidade e o direito à informação”.

 

O livro é classificado como uma leitura indispensável para jornalistas, pesquisadores, estudantes e interessados em mídia, política e democracia no Brasil.

 

Confira entrevista exclusiva

Brasil de Fato RS: A obra Memória de um Desafio resgata o processo de implantação da comunicação pública no Brasil, detalhando o esforço coletivo que deu origem ao sistema público em 2007. Poderia nos contar como se manifestaram as resistências políticas e a forte oposição da mídia tradicional que precisou enfrentar ao liderar a implantação da EBC e colocar a TV Brasil no ar?

Tereza Cruvinel: Inicialmente enfrentamos a disputa política no Congresso, o combate duro feito à proposta pelos dois maiores partidos de oposição ao governo Lula, que eram o PSDB e o Democratas, hoje União Brasil. Eles acabavam de sofrer a segunda derrota seguida na disputa pela Presidência e o que mais temiam era a continuidade dos governos do PT, o que acabou acontecendo com a eleição e a reeleição de Dilma, que decidiram derrubar pelo golpe parlamentar do impeachment em 2016. O discurso deles era o de que Lula, com a TV pública, iria criar um aparelho de propaganda para garantir-lhe o terceiro mandato com mais uma reeleição. Vencemos, entretanto, a disputa parlamentar com a aprovação da MP 398, que deu origem à lei de criação da EBC, a 11652/2008.

 

A oposição da mídia corporativa começou durante a tramitação da medida e estendeu-se pelos quatro anos de meu mandato. Sou a única ex-presidente da EBC que cumpriu inteiramente o mandato, depois extinto por Temer. Curiosamente, veículos impressos como a Folha de S. Paulo e O Estadão, que não eram concessionários de rádio ou TV, fizeram oposição até mais raivosa que os radiodifusores.

 

Havia um certo ressentimento patronal pelo fato de eu ter sido um quadro da elite do jornalismo privado que o trocou por um projeto de comunicação pública patrocinado por Lula

 

A pauta dos ataques variava. Estavam sempre querendo demonstrar que o governo interferia no jornalismo, que o custo da empresa era grande, que havia favorecimento editorial a Lula ou ao PT, que havia brigas internas na diretoria e coisas assim. A mídia praticou, como digo no livro, um verdadeiro bullying midiático contra a EBC e contra mim em particular, e cito alguns exemplos.

 

Tenho uma volumosa pasta de matérias que foram publicadas contra a EBC, contra mim e contra Franklin Martins, que era ministro-chefe da Secom e como tal presidente do Conselho de Administração da EBC. Havia um certo ressentimento patronal pelo fato de eu ter sido um quadro da elite do jornalismo privado que o trocou por um projeto de comunicação pública patrocinado por Lula.

 

O livro aborda os embates com a mídia corporativa e revela as tensões entre jornalismo, poder e democracia. Tendo tido passagens por veículos como O Globo e GloboNews, como essa experiência prévia influenciou sua abordagem e suas decisões ao presidir a EBC durante a fundação de um sistema de comunicação pública?

Logo depois da minha indicação enfrentei críticas da direita por estar, como entendiam, “trocando de lado”, e da esquerda por estar vindo do Grupo Globo, onde eu trabalhava há 25 anos e há 23 escrevia em O Globo uma das colunas políticas mais importantes do país, além de ser comentarista da Globonews. Mas a prática demonstrou que eu não pretendia reproduzir modelos do jornalismo global na EBC. Pelo contrário, eu havia aprendido lá o que não deveria ser feito no jornalismo público. Vale recordar, entretanto, que eu era diretora-presidente. A diretora de jornalismo era Helena Chagas, mas ela tinha a mesma origem e o mesmo pensamento que eu.

 

Você narra o processo em tom de memória e bastidor. Compreendendo a comunicação pública fundamental para defender a pluralidade e o direito à informação, qual é o detalhe de bastidor mais crucial para entender a essência do “desafio” enfrentado?

O maior dos desafios continua existindo, é o de construir a TV pública sem dispor de uma rede de cobertura nacional. Não se trata de um bastidor, mas de uma informação técnica que a própria mídia, tão crítica, ignorava. Criamos a TV Brasil com três canais que a União já explorava: TVE-RJ, TVE-MA e TV Nacional-DF. Isso não é nada. Depois conseguimos implantar um canal em São Paulo, Capital, embora em uma posição muito ruim.

 

A programação que fizemos naquele período era de qualidade, alguns conteúdos eram de excelência, mas não tínhamos como entregá-la ao maior número de pessoas

 

Naquele tempo não havia canais livres no sistema analógico e o digital estava apenas começando. Fizemos parcerias com as TVs educativas estaduais, mas elas exibiam só o que lhes interessava de nossa programação. Passaram-se 18 anos e a TV Brasil continua tendo os mesmos quatro canais digitais que implantamos. Por quê? Os canais estão disponíveis, mas o governo não garante à EBC os recursos necessários. Seria necessário pelo menos um bilhão de reais só para isso.

 

E assim, tendo uma existência precária, chegando a apenas quatro estados da federação (quando a doutrina manda que uma TV pública seja de alcance nacional), não sendo conhecida, juntamente com sua programação, da maioria dos brasileiros, a TV Brasil foi espancada por quem desconhecia estas limitações. A programação que fizemos naquele período era de qualidade, alguns conteúdos eram de excelência, mas não tínhamos como entregá-la ao maior número de pessoas.

 

O livro resgata o contexto político e cultural do período, citando a defesa da criação da TV pública nacional pelo então ministro da Cultura, Gilberto Gil, e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De que forma o clima político e cultural daquele momento específico (2007) foi decisivo para a viabilização da criação da EBC, projeto que enfrentou tanta oposição?

Politicamente, vale recordar que Lula havia sido reeleito, apesar do mensalão e da mídia, que não ocultou sua preferência pelo tucano Geraldo Alckmin. Sua popularidade cresceu com os resultados econômicos que ele começou a colher. No Congresso ele passou a ter base mais sólida com o ingresso do PMDB no governo, e isso foi importante para a aprovação da chamada MP da TV pública.

 

Culturalmente, o momento também era rico e Gil era um ministro importante, tinha peso no governo e grande ressonância social. O cinema e o audiovisual viviam um bom momento, a produção havia crescido muito, mas havia um gargalo na exibição, com o encolhimento do circuito de salas de cinema. Foi na Secretaria do Audiovisual do MinC, a SAV, então dirigida pelo cineasta Orlando Senna, que brotou a ideia da TV pública, pensada ali não como garantia de diversidade na informação, mas como janela de fomento e exibição. As duas pretensões se juntaram. Alas políticas do governo viram na proposta o primeiro aspecto, e a ala culturalista, o segundo. Ou seja, a TV pública poderia garantir mais pluralidade informativa e mais fomento e acesso à cultura.

 

A obra reflete sobre os ataques sofridos pela EBC nos governos seguintes, bem como os atuais desafios de reconstrução da empresa no governo Lula. Na sua visão, que é a primeira presidente da EBC, quais são os desafios mais complexos na reconstrução da empresa e como a memória histórica contida no livro pode contribuir para superar esses obstáculos hoje?

Eu acho que o livro pode ajudar muito os atuais gestores, mostrando o que precisa ser feito e o que não deve ser feito. A questão do financiamento será sempre um desafio. A EBC, como suas similares de outros países (exceto a BBC, que tem sua receita garantida pela taxa de antena), enfrentará sempre esta luta. E é exatamente por falta de dinheiro que ela não resolve o problema crucial da rede própria da TV Brasil, bem como o da formação de uma rede de rádio, sem falar que a Agência Brasil, com seu excelente jornalismo, seria potência bem maior se recebesse mais investimentos.

 

É preciso restabelecer a plena independência editorial dos canais públicos e um dia será preciso tirar da EBC a obrigação legal de prestar serviços ao governo

 

Institucionalmente há muitas deformações impostas por Temer-Bolsonaro que precisam ser corrigidas, mas eu me alongaria muito falando disso. Resumidamente, é preciso restabelecer a plena independência editorial dos canais públicos e um dia será preciso tirar da EBC a obrigação legal de prestar serviços ao governo, ainda que, em minha gestão, tenhamos instituído os contratos com esta finalidade, separando nitidamente a comunicação pública da governamental. Esta última consome boa parte dos recursos e anda tisna a percepção de que a EBC é gestora de mídias públicas. Em verdade ela tem dois braços. Todos estes aspectos são abordados criticamente no livro.

 

Texto: Katia Marko | Editado por: Vivian Virissimo | Brasil de Fato RS