VERA DAISY BARCELLOS – Jornalista, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS e militante feminista do Movimento das Mulheres Negras

 

Novembro passou. Vimos as constantes pautas referenciais à população negra no apontamento das questões étnico-raciais e do racismo que, diariamente, matam pessoas negras: adultos, jovens, crianças e mulheres. A rotina de extermínio e a violência contra o povo preto são recorrentes num histórico marcado por mais de 300 anos de uma violenta escravização que ofertou a esta mesma população um 14 de maio de 1888, o dia seguinte da abolição, sem trabalho, moradia, comida e um existir sem dignidade.

 

De forma similar, o novembro de 2021 mostrou famílias negras num viver com panelas vazias em locais insalubres, ausência de serviços da administração pública. Concentrado no mapa da fome, o Brasil assiste a meninos e meninas que também são assassinados por balas, cujas armas e atiradores raramente são identificados. Como também vemos crianças dizendo na TV que o café da manhã ou almoço foi farinha com açúcar. Este é o retrato da fome que tem cor, e ela é preta. A geografia da fome, exposta no livro do geógrafo brasileiro Josué de Castro (1946), se materializa, em pleno século 21, com crueldade, nos territórios de extrema pobreza.

 

Mas, não é só. O novembro da consciência negra trouxe a cruel lembrança de um fato ocorrido na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra de 2020: o assassinato, por espancamento e asfixia, do operário negro João Alberto Silveira Freitas — Beto Freitas —, 40 anos, dentro da loja Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. As imagens, via celular, da tortura e a omissão de imediato socorro alcançaram repercussão no país e no mundo. O mata-leão de hoje é o açoite de ontem na senzala.

 

O caso Beto Freitas, de acordo com a nota pública assinada pelo advogado e jornalista Dojival Vieira, do site AfroPress, junto com mais seis integrantes do Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos, revela que não se pode admitir a violação explícita da Lei, marcada “pela exclusão da responsabilidade da morte de Beto Freitas pelos seus autores e a transformação do processo de indenização pelo dano moral coletivo em negócio privado que precifica e mecardeja com a desgraça”.

 

Ainda me vem à memória uma dolorosa lembrança de 34 anos atrás. A morte, em 14 de maio de 1987, do amigo Júlio Cesar de Mello Pinto, apelido Boneco, 30, sem ficha criminal, executado por soldados da Brigada Militar, após ser retirado à força, como suspeito de roubo de um supermercado no bairro Partenon. A morte do Boneco entrou para a história do movimento negro gaúcho como o caso do “Homem Errado”. Após esse assassinato, nós, mães negras amigas da vítima, não permitíamos durante muitos anos que nossos filhos e filhas circulassem sozinhos nos supermercados.

 

Na época, não ficamos em silêncio, foram muitas denúncias ao Ministério Público do Trabalho. E por mais incrível que pareça — mesmo aos 73 anos —, ainda somos sujeitos visados pelos seguranças desses estabelecimentos. Quando um grupo de seguranças brancos suja as mãos com o sangue e morte de um homem negro, escancara que o pelourinho ressurge a cada dia, mostrando que o Brasil de 133 anos pós-abolição, ainda não se encontrou com a sua negritude marcada pelas desigualdades raciais e sociais, fatores determinantes para o viver precário e excludente da população negra brasileira.

 

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas trouxe, na época, as falas e postagens nas redes sociais de alguns mandatários da nação de que o Brasil não é um país racista e, sim, mestiço. Retomando um discurso ultrapassado após os anos de 1930, Primeira República, que destacava a dimensão positiva da mestiçagem e miscigenação no país, conforme aponta a doutora em Sociologia, Luciana Jaccoud, em seu artigo Racismo e República: o debate sobre o branqueamento e discriminação racial no Brasil, elaborado para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2008.

 

Portanto, superar esses problemas, atualmente, negados pelos que estão na condução do nosso país é fortalecer o projeto de uma nação democrática que implemente políticas públicas e sociais em todos os setores e áreas que possibilitem o acesso e oportunidades para a população negra. E, igualmente, para que não sejam repetidos casos à semelhança de Júlio Cesar e Beto Freitas, as empresas, todas, sejam de pequeno, médio e grande portes, se apropriem e coloquem entre as suas diretrizes os princípios e conteúdos dos documentos legais de enfrentamento e combate ao racismo, discriminação racial e preconceito. Mas sem precisar comprar o silêncio.

 

Fonte: Correio Braziliense – postado em 18/12/2021 06:00