Monica Cabanas Guimaraes *

 

Há exatos cem anos, em uma viagem de trem, do então deputado Elói Chaves, na antiga Estrada de Ferro Sorocabana, deu-se o início da história da Previdência Social brasileira. Nesta viagem, Chaves escutou, dos trabalhadores da ferrovia, que eles trabalhariam toda a vida deles para poderem sustentar suas famílias, especialmente aqueles que desenvolviam as atividades de forma insalubre, pois não possuíam nenhum tipo de seguro, apoio profissional ou benefício. A falta de qualquer tipo de direito a uma proteção social mínima, destes trabalhadores, conforme constatou o deputado – contumaz frequentador das ferrovias em seus deslocamentos – motivou-o a escrever o Projeto de Lei que, apresentado à Câmara de Deputados, converteu-se no Decreto n. 4.682, de 24 de janeiro de 1923 – o marco inicial formal da Previdência Social brasileira.

 

Afinal o que é previdência social? Na verdade, Previdência Social é um contrato social entre gerações que assegura direitos, justiça, equilíbrio e proteção social, como, também, qualidade de vida e acesso aos direitos elementares que todos os trabalhadores e trabalhadoras merecem, ao longo de sua vida laboral e posterior a ela. Este o verdadeiro significado de proteção, previdência social ou segurança social, como é conhecida nos demais países de língua portuguesa.

 

Na história da Previdência Social brasileira temos alguns marcos importantes. O primeiro deles foi o surgimento das Caixas e Institutos de Aposentadorias e Pensões que protegiam, desde a década de 20, grupos específicos dos trabalhadores de distintas categorias profissionais. Na década de 60, as Caixas e Institutos foram unificados e, com isto, surgiu o conhecido INPS, Instituto Nacional de Previdência Social e os direitos foram ampliados para uma grande parte dos trabalhadores brasileiros. Outro marco importante, para a proteção social dos trabalhadores, ao longo destes últimos cem anos de história, é, sem dúvida, a Constituição Cidadã de 1988, que consagrou o direito constitucional dos cidadãos à Previdência Social.

 

Ao longo destes 100 anos de existência, o direito à proteção social foi, progressivamente, sendo ampliado e passou de um pequeno número de profissões protegidas, pelas caixas especificas, para abranger uma ampla maioria de trabalhadores e trabalhadoras, tanto do meio urbano quanto nas áreas rurais do país.

 

Historicamente, o Brasil é um país de referência regional na definição de políticas de Estado, em matéria de previdência social, bem como nas políticas de extensão da cobertura da proteção social, com seus dois necessários componentes: cobertura contributiva e cobertura não contributiva. O Brasil também se destacou, ao longo das últimas décadas, pela resistência frente à tendência privatizadora, sobretudo nos anos 90 do século passado, mas, também, mais recentemente.

 

No caminho deste processo para assegurar os direitos aos trabalhadores à previdência social, a Constituição Federal de 1988, inserida no processo de redemocratização do país, foi um fator importante. A Constituição Cidadã, como é chamada, instituiu, no Brasil, um conceito inédito: o de seguridade social. A Carta Magna estabeleceu que essa ordem tem, como base, o trabalho e, como objetivo, o bem-estar e a justiça social. Com ela, o tema seguridade social passa a ser visto como um conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos, que conta com a participação da sociedade civil e se estrutura em três pilares: previdência social, assistência social e saúde.

 

Esse tripé inicia um sistema de proteção social que tem, por base, os seguintes princípios: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentralizado da administração.

 

Para atingir esses objetivos, estabelecidos na Constituição Federal, foram fundamentais o desenvolvimento de políticas de Estado, em matéria de proteção social. Um destes pilares importantes foi o diálogo tripartite, por meio da criação de conselhos nacional e regionais, onde o tema previdência social é abordado, podendo-se citar o Conselho Nacional de Previdência Social como exemplo de como este diálogo, realizado ao longo das últimas três décadas, contribui para fortalecer o sistema previdenciário brasileiro.

 

Outro diálogo social importante, desenvolvido no Brasil, ao longo destes 100 anos de existência da previdência, foi o Fórum Nacional de Previdência Social (FNPS), que esteve sistematicamente reunido, durante o ano de 2007. Sua composição foi tripartite, com participação de membros do governo federal, dos trabalhadores da ativa, aposentados e pensionistas e dos empregadores. Suas discussões foram realizadas a partir dos seguintes princípios: a manutenção do modelo atual de seguridade social (seguridade social pública, básica e solidária e seguridade complementária facultativa); respeito aos direitos que não seriam afetados; garantia de um grande período de transição em caso de qualquer proposta de modificação.

 

A Carta Magna brasileira também marcou um forte avanço na expansão da cobertura previdenciária a todos os trabalhadores da área rural, especialmente as mulheres trabalhadoras rurais, que, até então, dela estavam praticamente excluídas. Antes da Constituição de 1988, a categoria dos segurados especiais não existia, esta nova categoria profissional foi mais uma das conquistas da constituinte cidadã. Os impactos econômicos e de inclusão social da Previdência Social, sobre a população rural, no Brasil, são claros nestes últimos 35 anos.

 

Além de auxiliar na retirada de milhões de pessoas da situação da pobreza, o subsistema de previdência rural tem contribuído para garantir cidadania e, de forma inovadora no mundo, propiciar acesso universal à proteção social. No Brasil, a agricultura familiar tornou-se o principal vetor no abastecimento de alimentos para o mercado doméstico e, por este motivo, a previdência rural e a proteção aos seus trabalhadores devem ser vistas como uma forma de contrapartida à dedicação de homens e mulheres do campo.

 

Na atualidade, vemos o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), criado no início da década de 90, enfrentar um dos seus mais terríveis desafios, desde sua criação, que é debelar o represamento existente – que é, em sua essência, a negação da análise de um direito constitucionalmente garantido aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Agravam, este processo, a falta de profissionais qualificados ao atendimento das demandas da Instituição, devido ao grande número de servidores que se aposentaram nos últimos anos e sem a necessária substituição, como, também, quatro anos de políticas macroeconômicas desfavoráveis ao conjunto da sociedade e uma administração de igual teor.

 

Finalizando esta rápida e concisa história dos 100 anos da Previdência Social brasileira, a pergunta que fica é: Quais são os desafios que devemos esperar, para os próximos anos, da Previdência Social brasileira e que temas devem entrar no debate de fortalecimento do sistema? O primeiro desafio é compreender, estudar e gerir a crescente precarização social, política e do mercado de trabalho. Outro fator relevante é entender que proteção social não é um processo estático e, por isso, deve acompanhar as mudanças da sociedade, da economia e do mercado laboral, com influência de transformações tecnológicas, culturais e cientificas.

 

Outro desafio é fazer com que as inovações tecnológicas – que dispomos no momento –, cada vez mais intensamente sejam usadas em benefício dos trabalhadores e da melhoria do atendimento e da cobertura dos sistemas previdenciários existentes no país.

 

Num mundo pós-covid e, ainda, em recuperação da grave crise sanitária mundial que vivemos, é importante compreender que o ser humano deve ser o foco principal das políticas públicas, que devem ser capazes de gerar emprego de qualidade, renda e solidariedade social, capazes de consolidar um sistema de previdência social solido e justo e que atenda aos anseios, sonhos e desejos de toda a sociedade brasileira.

 

* Monica Cabanas Guimaraes é jornalista, escritora, terapeuta, trabalhou na Previdência Social brasileira por 33 anos e é diretora do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul – SindJoRS